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Trigo, farinha, pão, farelos 

Chegou em casa cansada do trabalho. Tirou a roupa suja e o dia que tinha carregado nas costas desde as sete da manhã. Sua coluna doía. Seus pés também. Por dentro, algo se movia como lava. Depois do banho, a toalha molhada, o espelho embaçado, a noite que já se espalhava casa adentro, secar o chão do banheiro.

 

Foi fazer uma xícara de chá preto e o tomou bem quente, com açúcar e sem leite. Depois da massa do pão ficar pronta, colocá-la na bacia e deixá-la crescer, tapando-a com um pano. Depois levar ao forno. Depois repartir o pão ainda quente e compartilhá-lo com todos ao redor da mesa. Nada sobra. A fome termina. Todo pão é santo e no chão cairão algumas migalhas. E dos farelos: novas sementes.

O passeio dos carvalhos

Um dia

Estava escrito: um dia você terá que sair apressado de manhã cedo pois terá de pegar o trem para Euston.

 

Um dia, você lavará muitos pratos, copos e talheres. Um dia, você limpará mesas em restaurantes, dobrará guardanapos em hotéis e recolherá bandejas em cafés. Um dia, seus pés (com bolhas) vão estar doendo muito no início da noite e também estarão doloridos os seus braços, as suas costas e a sua cabeça.

 

Um dia, você organizará cardápios e irá polir garfos, facas e colheres. Um dia, você irá colocar todas as pesadas cadeiras do restaurante sobre as mesas, terá de varrer todo o chão, depois terá de lavá-lo e no final colocar de volta todas as cadeiras sob as mesas. Um dia, você terá de dizer thank you e sorrir, diariamente, centenas de vezes para todos os clientes.

 

Trecho do texto Um Dia,

do livro De Passagem

Quando você falhar, ande pelo parque no outono, caminhando devagar por entre bancos de madeira antigos, aparentemente vazios. Passe bem próximo dos carvalhos. Veja como a Natureza muda também, perdendo suas folhas e adquirindo dia após dia um aspecto de “estar desaparecendo”. Mas não está se extinguindo, não. Está é passando por uma das fases de seu necessário ciclo, como nós, como a Lua. Então se você sentir que falhou, pense que a sua derrota foi também como uma folha que secou, caiu e será levada pelo vento. 

 

Quando você tropeçar, pare um pouco e lembre-se do quanto você amadureceu nestes últimos anos. Não, você não está parado e nem andando para trás. O que acontece é que as situações que nos machucam e que parecem nos atrapalhar são, na verdade, pedras pelo caminho. No entanto, temos a habilidade para construir pontes com estas mesmas rochas. Destas dificuldades, construa a sua ponte e vá até o outro lado do rio. Mas se você quiser continuar vivendo à margem e não quiser atravessar, a escolha é sua e de mais ninguém.

 

Quando tudo estiver difícil, procure um lugar sossegado, feche os olhos e lembre-se de todos aqueles que por você demonstram estima e afeição. Pense em seus rostos e vozes. Relembre que eles estão sempre torcendo por você e lembre-se que se você passou por um momento complicado, foi porque tinha que aprender algo. E por ter aprendido, tente não repetir os mesmos erros.

 

Soube uma vez desta história de uma mulher que gravou aplausos. Ela colocou em um mesmo CD aplausos gravados em shows. Havia horas de gravações de palmas de centenas de milhares de pessoas. Todos os dias, quando acordava, ela colocava este CD num volume alto. Aplausos que ela imaginava: eram para ela. Enquanto caminhava entre seu quarto e o banheiro, ela era aplaudida! Visualizava-se num palco bem grande e iluminado. Começava sempre assim o seu dia, sendo celebrada por todos. Ela era um sucesso!

Quando você chegar ao fundo do poço, lembre-se de que é lá que se encontram espessas camadas de rochas e utilize esta superfície como um alicerce para construir seus sonhos daqui para a frente. Se os ideais e as ilusões que você tinha desmoronaram todos de uma só vez, não se preocupe. Do centro da Terra, sob os seus pés (machucados de tanto andar) virá a base que irá sustentar a construção do seu presente e do seu futuro de agora em diante.

 

Quando você estiver desanimado, abra todas as pesadas e escuras cortinas de seu apartamento e permita o máximo de luz sobre os móveis empoeirados, pelos cantos úmidos e sobre as xícaras de café com açúcar endurecidos. Veja que não é a escuridão que alimenta o corpo e a mente. É a luz. Alguns dizem que o que é negativo se desenvolve e se alimenta do que é negativo também. Algumas coisas só se expandem no mais escuro de janelas trancadas. Portanto, é na claridade que conseguimos crescer e nos movimentar.

 

Quando você fracassar, lembre-se de que um dia você leu as palavras de alguém que, assim como você, também falhou. E da derrota fez adubo para seus planos e projetos. 

Mas se sentir que tudo deu errado e se você estiver muito só, deixe a cidade (nem que seja por um final de semana apenas) e vá para o campo. Quando estiver lá, saia à noite para caminhar e encontre um lugar onde possa ficar em silêncio. Preste atenção nos vaga-lumes e em como os arbustos se mexem, sendo penteados pela suave brisa da noite. Escute o seu coração. E depois tente não pensar em nada. Observe o céu estrelado. O que você sentir: isto é a resposta que você precisava.

Trecho do texto O Passeio dos Carvalhos,

do livro De Passagem

 

Telas no Chão Encostadas na Parede

Ele liga o rádio. De seu apartamento, vê toda a cidade. A vista vai muito longe: o Rio Tâmisa, o Parlamento e o Big Ben. 

 

Prepara uma xícara de chá. Na mesa, revistas de artes visuais, literatura e filosofia. Todas novas. E a Tate Etc.. Ele adora a revista Tate Etc..

 

Marca compromissos, dá vários telefonemas, envia e responde diversos e-mails. Faz anotações e toma mais chá. O friozinho do outono gela o ar e esfria tudo ao redor. Nesta cidade, quase nunca faz sol, mas isso ele sabia antes de se mudar. Por isso mora em Londres.

 

Ele estava naquela manhã sentindo no ar algo mais que o cheiro de suas flores, plantas e folhagens preferidas. Olhou à sua volta e observou a vida que tinha construído. 

 

Sempre soube que um dia estaria naquele apartamento, com aqueles pensamentos e com aquela xícara de chá, respirando o ar e apreciando a vista daquela cidade cinza, mas tão linda. 

 

Trecho do texto Telas no Chão Encostadas na Parede,

do livro Apagando Um Cigarro Atrás do Outro

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